MEU TERREIRO DE CANDOMBLÉ, MINHA CASA, MEU QUINTAL: SABERES ANCESTRAIS E AGROECOLOGIA

Autores/as

  • JAQUELINE DE S. B. ) SANTOS (NDUMBE jqbarreto@gmail.com
    Casa-Terreiro Ventos de Angola/Caxuté/ Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
  • ANA C.N G (MATAMBALE) kikigivigi883@hotmail.com.br
    Casa-Terreiro Ventos de Angola/Caxuté/ Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
  • FRANCELLE. F. SALVADOR (NLUINDA KATAMBALAMAZI) ferrettisalvador@gmail.com
    Casa-Terreiro Ventos de Angola/Caxuté/ Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Resumen

Este artigo apresenta resultados parciais de um projeto do Mestrado Profissional em Educação do

Campo/Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em parceria com a Casa-Terreiro Ventos de Angola/Caxuté-
Ba, em Amargosa-BA (assim chamamos os terreiros que estão iniciando seus fundamentos ancestrais, vinculados

a outro mais antigo) coordenada por Mametu kafurenga e sua filha Matambale. Desde 2016 o Nzo é vinculado
ao Nzo Kwa Minkisi Nkasuté ye Kitembu Mvilla (Caxuté, Valença-BA), nossa raiz.
O projeto foi produzido a partir da demanda da comunidade que se identifica como pertencente a um
terreiro do campo, em processo de construção de sua identidade camponesa, ao mesmo tempo em que se afirma
como terreiro de candomblé. Tem como objetivo o desenvolvimento de pautas de uma comunidade tradicional
ao Mestrado em Educação do Campo, por meio do exercício político de (re) construção/incrementação de um
Quintal Produtivo Agroecológico no que se constitui a área do terreiro. O espaço possui três construções – o
Barracão e Ndemburos – e é ladeado por espécies variadas e nativas que podem ser potencializadas e ainda mais
diversificadas para consumo da comunidade e para os rituais de candomblé, utilizando-se de práticas alternativas
de manejo e plantio, ancoradas na agroecologia. Para isso, o diálogo se dá entre as pedagogias desenvolvidas no
terreiro-raiz (SANTOS, 2019), através da Escola Caxuté (primeira escola de matriz africana do baixo Sul da
Bahia) por Mametu Kafurenga e o que já se têm produzido como pedagogias do campo.
O espaço sagrado de terreiro instaura relações com a terra, que vão além da produção e uso do solo,
implicando no reconhecimento político dos sujeitos, a partir de estratégias agenciadas por politicas de resistência
(LUGONES, 2014). Estas estratégias tem a terra como espaço ancestral de ngunzu e luta. Os sujeitos lá
coletivizam suas demandas em ‘família de nkise” combinando tradição e criação de meios que fazem deste lugar
sua casa e seu quintal, rememorando as famílias extensas das comunidades africanas e indígenas, bem como a organização de quilombos. A raiz Caxuté e suas Casas-Terreiro consideram-se espaços campesinos de culto aos
ancestrais- terreiros do campo- e de educação, enraizada na cosmovisão bantu-indígena (SANTOS, 2019). Além
do principio do bem-viver que orienta os Nzo, vem se tornando um território de defesa da reforma agrária, de
práticas agroecológicas e de (re)existência de povos tradicionais. Relaciona-se às lutas pelo território com base
no ‘mandato ancestral’ (ESCOBAR, 2014) – memórias e testemunhos dos mais velhos- criando um lugar
relacional que se produz em contraposição a ontologia binaria do Ocidente. O povo preto cria-se assim na
diferença colonial de onde se pode acionar a memória dos povos ancestrais e criar defesas à terra como bem
comum, uma vez que a tomada das terras, o avanço do agronegócio, o interesse cada vez maior por commodities
agrícolas tem ensejado e concretizado agroestratégias que, em nome do agronegócio - novos projetos hídricos e
de tomada das riquezas minerais - avançam para a expansão das fronteiras agrícolas gerando discursos de
inferiorização de povos tradicionais e sua supostamente ‘inútil’ relação com a terra (SAUER, 2013).
Povos de terreiro tiveram suas práticas ancestrais encerradas em territórios contínuos e escondidos, bem
como limitado o acesso a territórios descontínuos necessários aos rituais – matas, cachoeiras, manguezais,
pedreiras, etc. – em função da propriedade privada da terra e discriminação da religião de pretos (REGO, 2006;
NASCIMENTO, 2016). Isto nos levou a crescente urbanização dos terreiros e às complexas destituições da
significação de nosso legado ancestral. Deste modo, na contramão das agroestratégias, nos inscrevemos na
reconstituição de nosso território sagrado no campo. A agroecologia dialoga com os saberes, proporcionando um
novo projeto atado ao bem-viver.
Assim, o Quintal Produtivo Agroecológico é espaço de convivência entre várias espécies nativas ou não
que formam um sistema, geralmente de fácil acesso a uma família ou comunidade (CARNEIRO, et al. 2013),
sem necessitar de modelo rígido. As combinações entre árvores frutíferas, raízes, ervas, hortaliças, etc., fazem
destes espaços, locais de abastecimento e de (re)criação de modos de cultivo ligados a saberes comunitários e
ancestrais. Nas comunidades de terreiro estes saberes estão relacionados às mulheres, assim como,
tradicionalmente, as experiências femininas camponesas de cuidado com as famílias engendram praticas
culturais, o aprendizado com as mais velhas, o cultivo para autoconsumo e uma especial atenção à alimentação
levando em conta a valorização de alimentos regionais (OLIVEIRA, 2009). Destarte, o espaço do terreiro, voltado
aos ritos com os Mukixi e a perpetuação da família ancestral, dedica-se ao aproveitamento das espécies locais –
aroeira, cajueiro, ervas, dendê, etc, para plantio de outras.
A metodologia utilizada para a incrementação do Quintal – que se torna um exercício prático e político
de fazer-pensar - é a pesquisa-ação, uma vez que está se utiliza da participação de todas as pessoas envolvidas na
produção, execução e avaliação das etapas de pesquisa. Para Thiollent trata-se de “(...) um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um
problema coletivo” (THIOLLENT, 2011, p. 20). Por interessar-se por uma pesquisa engendrada que toma os
saberes como constitutivos de um contexto e submeter-se à organização de variáveis, não desprezando contextos
locais, esse método propõe uma relação construtiva e dialógica entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa. Esta
mesma relação é que indica as questões da pesquisa e as suas prioridades, bem como o encaminhamento prático
de questões concretas; a avaliação constante dos procedimentos visando que os participantes sejam capazes de
construir novas soluções gnosiológicas e também praticas para a situação que está proposta. Deste modo, é
possível dizer que o conhecimento é produzido por necessidades práticas e gera também soluções práticas e
amadurecimento dos sujeitos envolvidos (THIOLLENT, 2011). Assim, a comunidade de terreiro, junto à
pesquisadora, também membro da comunidade, estabeleceu etapas de ação para a pesquisa, denominando-as
Giras de Saberes- espaço formativo, prático e de diálogo.
As etapas de intervenção até aqui realizadas foram definidas em conjunto e assim divididas e
sistematizadas: a) construção da fossa séptica biodigestora b) articulações com sujeitos dos movimentos sociais
pela terra (MST, MPA), c) cuidado da terra: capina, forra e podas, d) seleção de mudas de nsabas e alimentos para
plantio. Cada Gira envolveu os membros da comunidade de terreiro, líderes de movimentos sociais pela terra, e
discentes do Mestrado, nos anos de 2018 a 2019. O princípio epistemológico que nos orienta é de desnudamento
do espaço abissal criado pela modernidade colonial que toma a ciência como referente e o princípio da
universalidade por ela construído como classificador e orientador dos saberes. Assim, por meio da partilha nas
Giras mostramos a linha abissal invisível que revela como esta lógica produz conceitos referentes, ao mesmo
tempo em que torna outros conhecimentos “(...) incomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem, nem
aos critérios científicos de verdade, nem aos dos conhecimentos, reconhecidos como alternativos, da filosofia e
da teologia” (SANTOS, 2010, p.53).
Na primeira gira buscamos alternativas que nos direcionassem para uma prática de respeito aos saberes
ancestrais e tradições e isto fez com que refletíssemos sobre os cuidados com o sagrado para nós: a terra e a água.
Nossos ancestrais sabiam disso produziam distancias entre dejetos e margens de rios e solo para alimentos. O
sistema de fossas biodigestoras é uma alternativa para locais onde não existe sistema de saneamento básico
disponível pelos municípios, atrelado à falta de distribuição regular de água para as comunidades, dois fatores
em nossa região. Por outro lado, o calor nordestino favorece o emprego de biodigestores e o sistema de fossas
(BARREIRA, 2011). Assim, por ser de fácil aplicação e baixo custo, também atende as demandas da comunidade.
A construção da fossa foi realizada, dialogada e aprendida pela comunidade. Foi feito um conjunto, com três
estruturas de alvenaria interligadas por tubulações. A primeira caixa é onde ocorre o processo anaeróbico dos dejetos provenientes das descargas, ou seja, o processo de biodigestão converte matéria orgânica em gás
carbônico e metano, já que altas temperaturas como em nossa região, facilitam a proliferação de bactérias e
microrganismos. Entretanto uma solução de esterco de boi diluído em água e adicionado nessa primeira caixa
para acelerar a proliferação destes microrganismos e bactérias. A segunda estrutura recebe águas provenientes de
pias, cozinhas, ralos e banhos, identificados como águas cinza. Essa recebe um filtro, formado de cascalhos, britas
e carvão ativados, onde as águas da primeira e segunda caixas é filtrada por este filtro biológico, após o primeiro
filtro as águas são direcionadas para uma terceira caixa. Esta última é formada por um filtro de sementes de
moringa, e posteriormente, a água é destinada ao reuso. As águas residuais têm substâncias inorgânicas que
aumentam de forma considerável a fertilidade do solo. A quarta etapa do projeto ainda não está concluída, mas
trata-se da captação de aguas pluviais para reuso na comunidade.
Na segunda Gira realizamos uma conversa sobre “Honrar os Mortos para nos mantermos vivos: Abril
Vermelho e a reforma Agrária”, com festa, comida e dança para a articulação entre os ensinamentos ancestrais e
sujeitos da luta da reforma agraria, personificada por líderes dos movimentos sociais da terra – Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra e Movimento dos Pequenos Agricultores, com objetivo de combinar ações
estratégicas, conversar sobre produção e terra, sementes crioulas e terra, relação entre movimentos campesinos
de luta pela terra e agroecologia. Na terceira e quarta Giras realizamos capina e forra, podas e seleção de mudas.
Os resultados parciais indicam a complexa relação entre saberes locais, marcados pela ancestralidade e
outros construídos pela ciência, mas que busca, de forma múltipla tomar a agroecologia como eixo de
problematização de projetos, ao passo que deixam o desafio a discussão da ecologia de saberes. Trata-se de um
terreiro do campo que reconhece na partilha entre saberes ancestrais e agroecologia a forma de construção da
relação ontológica com a terra e de (re) fazer percursos importantes para a defesa da terra como bem comum. Os
desafios estão colocados, mas a certeza de que candomblé é força, ngunzu e resistência está plantada naquele
pequeno pedaço de chão em Amargosa.

Publicado

2021-08-27

Cómo citar

SANTOS (NDUMBE, J. D. S. B. ), G (MATAMBALE), A. C., & SALVADOR (NLUINDA KATAMBALAMAZI), F. F. (2021). MEU TERREIRO DE CANDOMBLÉ, MINHA CASA, MEU QUINTAL: SABERES ANCESTRAIS E AGROECOLOGIA. Cadernos Macambira, 4(2), 74–78. Recuperado a partir de http://revista.lapprudes.net/index.php/CM/article/view/374