ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NO CAMPO: CONTRA O PATRIARCADO E A FAVOR DA VISIBILIDADE E AUTONOMIA DAS MULHERES RURAIS
Abstract
A lógica de dominação sobre a natureza e seus recursos, de acordo com a qual se dá o desenvolvimento
da agricultura moderna, é a mesma que estrutura as desigualdades entre os gêneros e a dominação dos homens
sobre as mulheres (SERRANO, 2015). A agroecologia por sua vez, vem na contramão desta lógica insustentável
do sistema capitalista e tem princípios alçados nos conhecimentos tradicionais, preservação da biodiversidade e
do ecossistema, igualdade entre os gêneros, comércio justo, metodologia participativa e visão sistêmica. Sendo
assim, ao nos desprender do reducionismo do termo Agroecologia como transição do modelo de produção e
entendê-la como ciência, prática e movimento, percebemos que ela caminha junto ao Feminismo e luta contra o
avanço do capitalismo e toda a forma de dominação, sendo uma construção política, popular, social, cultural,
ancestral, científica, econômica, estratégica e de classe no enfrentamento ao patriarcado e na construção de uma
sociedade mais justa. (FREIRE, 2009). Segundo Marra e Jesus (2017), para que a agroecologia se desenvolva, é
importante que as diferenças entre homens e mulheres sejam problematizadas a partir da ótica da desigualdade
de gênero, já que historicamente as mulheres permanecem no espaço privado, associadas a função de reprodução
e manutenção da vida humana reforçando e evidenciando a subordinação do gênero feminino ao masculino. Ainda
que o processo educativo de formação política nesse sentido de desconstruir as relações de gênero socialmente construídas tenha barreiras a enfrentar, Andrea Butto 2011 apud Marra e Jesus 2017, destaca que a ação política
dos movimentos de mulheres do campo e dos grupos organizados de mulheres em movimentos sociais mistos
desde os anos de 1980 tem contribuído nas conquistas das mulheres rurais, como por exemplo, a garantia da
aposentadoria ou o acesso a documentos pessoais, direitos básicos antes negligenciados. Nesse contexto,
podemos perceber a relação do feminismo com a agroecologia nos diversos espaços do público e do privado,
garantindo a autonomia e visibilidade às mulheres rurais, através da desconstrução e desnaturalização das funções
atribuídas ao gênero feminino e a partir da qual este trabalho se debruçará, buscando discutir as relações desiguais
de gênero no campo, principalmente no que diz respeito a divisão sexual do trabalho. O presente trabalho se
edifica na defesa da teoria do conhecimento materialista histórico-dialético, por compactuar com sua relação com
a totalidade social. Segundo Kosik (1976), totalidade significa, realidade como um todo estruturado dialético, do
qual ou no qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido.
O materialismo histórico dialético ao aprofundar-se nas expressões e contradições da sociedade de classes, busca
possibilitar uma compreensão real do problema científico posto e por meio de suas categorias elucida formas de
procedimentos para execução de uma determinada investigação científica. A pesquisa teve cunho bibliográfico e
todo o percurso metodológico está inserido dentro do arcabouço teórico de uma pesquisa qualitativa. Entendemos
que as categorias não são utilizadas de maneira pontual em partes específicas do trabalho, e sim balizando a
relação pesquisador-objeto de pesquisa durante toda sua composição, ajudando nos procedimentos
metodológicos. Ainda assim, pensamos ser importante destacar a categoria metodológica contradição como
fundamental no entendimento do objetivo geral do trabalho, partindo do pressuposto que analisamos as relações
desiguais de gênero no campo. Enquanto categoriais de análise do nosso objeto, para mediação entre o universal
e o concreto a fim de atingir nossas intenções na investigação científica, esboçamos neste trabalho as categorias:
Relações de gênero e trabalho. Segundo Minayo (2007), as categorias analíticas retêm as relações sociais
fundamentais e podem ser consideradas como base para a compreensão do objeto nos seus aspectos gerais. A
primeira categoria, relações de gênero, tem enquanto sua expressão concreta, a luta dos movimentos feministas
pela equidade de direitos, na cidade e no campo. É incipiente compreender o conceito de gênero para posterior
compreensão da importância da categoria apontada. Sendo assim, para Scott (1990), gênero refere-se a um
sistema de relações de poder baseadas num conjunto de qualidades, papéis, identidades e comportamentos
opostos atribuídos a mulheres e homens. Segundo Safiotti (1998), a sociedade delimita com bastante precisão, os
campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.
Tal disparidade, fruto de uma sociedade patriarcal, ao mesmo tempo que historicamente oprime as mulheres,
alicerça a construção da luta feminista que almeja a libertação ideológica, sexual, econômica, política e cultural das mulheres. A segunda categoria, trabalho, precisa ser entendida dentro da realidade social que está inserida
sem abandonar seu conceito elementar, a fim de que possibilite o entendimento necessário dentro do debate das
relações de gênero. O trabalho em seu sentido primordial tem a ver com a garantia da sobrevivência humana, é
através dele que dialeticamente por meio sustentável extraímos da natureza o necessário para produzir e
reproduzir nossa existência. Porém, em nosso atual modo de produção, como já supracitado, a natureza, bem
como o processo de trabalho não é entendido em toda sua complexidade, passando apenas a atender aos anseios
de uma sociedade capitalista em desenvolvimento, onde a expansão do capital está no centro do interesse humano.
Ainda dentro deste processo que divide a sociedade em classes, existe a divisão sexual do trabalho que diferencia
o sentido e significado do trabalho para homens e mulheres. Assim, questionar a divisão sexual do trabalho e a
forma como se materializa, é outro objetivo que deve fazer parte de um projeto de construção, luta e conquista
da Agroecologia. Recuperar o valor do trabalho como uma atividade humana em si com toda sua complexidade,
que ultrapassa a lógica dualista de qualificá-lo como trabalho produtivo (o monetarizado) e trabalho reprodutivo
(o que não tem valor social), faz parte dessa luta. (JALIL, 2009, p.89). Como já foi discutido, a diferença entre
os gêneros é uma construção social arraigada nos valores culturais baseados nas relações de poder, assim como
seus papéis sociais. Deste modo, não há espaço para justificá-los utilizando a ideia de uma diferenciação natural
entre ambos, onde evidentemente as mulheres sempre são hierarquicamente desprivilegiadas. Dessa forma,
construir o feminismo a partir de experiência concretas do cotidiano nos ajuda a compreender como o patriarcado
vai construindo as bases para que o sistema capitalista aprofunde a exploração do trabalho, corpos e território das
mulheres e continue mercantilizando todas as esferas de suas vidas (TELLES E MOREIRA, 2018). Nesse sentido,
não cabe nesta discussão a reprodução de análises superficiais que acabam conferindo às mulheres os mesmos
adjetivos e atribuições construídos socialmente sob a égide do machismo, como por exemplo, as
responsabilidades dos cuidados com a casa e nutrição da família, que são naturalizadas socialmente pela prática
cotidiana. A utilização da naturalização desses papéis como justificativa das opressões sobre as mulheres, por sua
vez, aparece para suprir o espaço de sua existência concreta. Todo esse processo acaba influenciando para que
mulheres permaneçam ocupando uma esfera privada e invisível, ainda que estejam presentes em todo o processo
produtivo, do preparo da terra à colheita e comercialização, não detendo-se apenas ao cultivo de hortaliças,
plantas medicinais e ornamentais, como infelizmente enfocam algumas literaturas ao abordarem este tema. Dessa
forma historicamente muitas das atividades produtivas realizadas pelas mulheres são consideradas uma extensão
do trabalho doméstico. É importante ressaltar que essa modalidade da divisão sexual do trabalho no campo está
vinculada à introdução da noção capitalista de trabalho, que justamente reduz trabalho ao que pode ser trocado
no mercado. O fato de que as mulheres realizam várias atividades ao mesmo tempo dificulta e limita a avaliação do tempo gasto com as tarefas domésticas. Faria (2009. p. 6). Faria (2009) segue fazendo uma coerente reflexão
acerca das ilusórias diferenças existentes quando se fragmenta o trabalho nas esferas produtivas e reprodutivas
como consequência de uma construção histórica patriarcal. A autora pontua os recentes debates no âmbito da
economia feminista que sempre se empenhou em visibilizar as mulheres como autoras econômicas, e assim,
dando ênfase a extensa quantidade de trabalho doméstico e cuidados com o lar e seus filhos, destinados às
mulheres e chama atenção para importância da não dissociação do âmbito produtivo e reprodutivo do trabalho.
Na sociedade capitalista a esfera mercantil e salarial depende do trabalho doméstico e dos bens e serviços que aí
se produz. A produção mercantil não é autônoma e depende do trabalho não remunerado nos lares. Nesse sentido
há uma falsa autonomia dos homens que utilizam os bens e serviços realizados pelas mulheres. Faria (2009, p.
5). Por outro lado, os homens seguem ocupando a esfera pública, estando a frente das agricultoras nas
representações sindicais, administração e gerência da terra. No Brasil apenas 30% das mulheres do campo
possuem a titularidade da terra, ainda que sejam maioria populacional, como afirma Silva (2016), “a prática ainda
permanente e recorrente é a titulação, diretamente, a o homem da família, mesmo com passos e avanços já dados.”
(SILVA, 2016, p. 194). Essas contradições não se encerram no plano da titularidade das terras, podendo ser
percebidas também ao analisarmos outros aspectos da realidade feminina no campo. Nos países do Sul, as
mulheres são as principais produtoras de comida, as encarregadas de trabalhar a terra, manter as sementes, coletar
os frutos, conseguir água, cuidar do gado... Entre 60 e 80% da produção de alimentos nesses países recai sobre
as mulheres, sendo uns 50% em nível mundial (FAO, 1996).[...]. Entretanto, apesar de seu papel chave na
agricultura e na alimentação, elas são, juntamente com os meninos e meninas, as mais afetadas pela fome. Vivas
(2012, p. 1). Diante dessas estatísticas que retratam um pouco do que é a realidade vivenciada pelas mulheres,
especialmente as do campo, é possível perceber que elas têm especificidades bem demarcadas no movimento em
direção a construção da agroecologia, fazendo-se necessário participarem ativamente dos espaços, buscando
assumir o protagonismo nas lutas do campo. “Portanto afirmamos que o mundo pelo qual nosso feminismo e
nossa agroecologia lutam só será possível com a autonomia das mulheres sobre suas vidas, seus corpos, seu
trabalho, sem ameaças cotidianas de violência nas casas, nas ruas, nos roçados, nas redes e nos movimentos.”
(TELLES e MOREIRA, 2018, p. 2). Como pudemos aprofundar ao longo do estudo, a visão hegemônica do
trabalho no campo em nossa sociedade se fundamenta em uma ideologia patriarcal e segue condicionada a um
desenvolvimento de caráter capitalista. Neste ínterim, se constrói historicamente uma divisão entre o campo da
produção e da reprodução, sendo o primeiro de responsabilidade masculina e o segundo feminina, sendo ambos
organizados hierarquicamente com a manutenção do poder do homem em detrimento da invisibilidade da mulher,
bem como do seu trabalho. É fulcral a ressalva de que o debate sobre agroecologia por uma ótica feminista não diz respeito a um local especificamente determinado para as mulheres, e sim, se preocupa com uma construção
coletiva de camponesas e camponeses pela superação da lógica capitalista de trabalho no campo, que não trata a
relação ser humano-natureza com a integridade e complexidade necessária para o desenvolvimento sustentável
da humanidade, combatendo dentro desta luta qualquer tipo de opressão existente e de exploração de um ser
humano por outro. Garantindo assim, que as mulheres consigam se entender dentro de todo processo de trabalho
no campo, livres da hierarquização masculina, se tornando consciente da sua acuidade e responsabilidade social
na construção de um novo modelo de sociedade, que garanta a toda humanidade acessar as condições dignas
necessárias de produção e reprodução de suas vidas equitativamente.