MULHERES QUE NASCEM DO BARRO: O LEGADO DE CANDOMBLÉ E A FILOSOFIA DE SUMA QAMAÑA NA CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO-CAXUTÉ

Autores/as

  • ANA CRISTINA N. GIVIGI (MATAMBALE) Casa Terreiro Ventos de Angola/Caxuté e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
  • CAMILA B. S. AVELINO (MAKOTA) Casa Terreiro Ventos de Angola/Caxuté Universidade Federal do Sergipe
  • PRISCILA G. DORNELLES (KOKULEHOOXI) Casa Terreiro Ventos de Angola/Caxuté e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Resumen

Nosso corpo é terra e água. A Angola é barro. Então, cuidar da
terra é cuidar de nós. Cuidar do que somos feitos. Cerca nas
águas, derrubar! Se a roça não planta, a cidade não janta!
Nosso legado é vida, vivamos por ele! (Mametu Kafurenga)
Esta escrita é um recorte focal dos resultados parciais de pesquisa de pós- doutoramento, partilhados e
posteriormente estendidos pelos trabalhos do Grupo de Pesquisa Núcleo Capitu/CNPq e pelo Mestrado
Profissional em Educação do Campo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e parcerias. O tema
proposto para este texto cartografa a relação do candomblé com a luta pela terra e a produção de formas de cultivo
e manejo que relaciona, ao mesmo tempo, o legado de candomblé e agroecologia. Ancora-se na existência do
campesinato negro brasileiro e suas múltiplas estratégias de organização (GOMES, 2015). Este artigo discute
como o legado de mulheres de candomblé do Nzo Kwa Minkisi Nkasuté ye Kitembu Mvilla (Terreiro
Caxuté,Valença-BA) ressignifica a relação da vida com a terra, constituindo lutas ontológicas (ESCOBAR, 2014)
cuja ética dialoga com a filosofia de suma qamanã (LUGONES,2014) para/ na construção do território-Caxuté.
Esta pesquisa consiste numa cartografia cujo movimento é “(...) desenhar redes de forças à qual o objeto
ou fenômeno em questão se encontra conectado” (PASSOS et al. 2010, p.57) e daí fazer mapas abertos e passiveis
de serem alterados por relações de forças. Deste modo, a cartografia lança mão de procedimentos que deem conta
de seguir rastros dos desenhos geopolíticos e estéticos. Utilizamos o diário de campo, a entrevista coletiva e 

entrevista semiestruturada. Também recorremos a meios digitais para localizar pessoas que não estavam no
momento de discussão coletiva. Deste modo, produzimos dispositivos de pesquisa que nos oferecem categorias
analíticas. Aqui, os discursos agrupados e analisados dos sujeitos de pesquisa, as mulheres de candomble se
organizam por meio de duas categorias Mulheres de candomblé e campesinato negro; e Agroecologia e legado
ancestral, se entrecruzando.
O discurso hegemônico intersubjetivado pela modernidade colonial invisibilizou, por meio da violência
colonial, as diversas organizações e experiências de povos negros e ameríndios na América. Quijano (2005) diz
da necessária classificação dos povos a partir da invenção da raça para a hierarquização e divisão do trabalho,
fundados num padrão de poder intersubjetivado, colonial, contínuo, e que controla o sexo e seus produtos – a
colonialidade de poder. Sendo assim, a desumanização dos povos não europeus é condição para a existência do
capitalismo. Tal padrão tornou possível a mais cruel diáspora forçada da humanidade – o tráfico atlântico de
africanos/as, além da extrema violência impingida aos povos vermelhos.

Contudo, para além do trabalho forçado na produção agrícola
agroexportadora, estudos apontam a complexidade social na
organização de negros/as. No entorno dos engenhos, escravizados e
libertos com as suas famílias, as suas roças e suas economias autônomas
e os quilombolas com as suas diversificadas práticas econômicas,
desencadearam a formação de um multifacetado e complexo campo
negro intrinsecamente produzido e entrelaçado ao próprio regime da
escravidão (GOMES, 2006, p. 53).

O cultivo de roças conferiu a essa população espaços de independência pessoal e familiar e fortalecia os
laços de solidariedade entre a população negra através da defesa e uso coletivo da terra, bem como oportunizava
insurreições. As comunidades negras do Baixo Sul da Bahia nasceram da confluência de negros escravizados–
classificados homogeneamente pela modernidade como ‘africanos ́’ - e da atrativa produção agrícola e fabril que

se desenvolveu nessa região em meados do século XIX. A fábrica Todos os Santos instalada na cidade de Valença-
BA foi o primeiro grande empreendimento industrial brasileiro. Desse modo a região passou a atrair um número

significativo de migrantes negros – esses colonos eram oriundos das regiões mais afetadas pela crise do açúcar,
tais como, as províncias de Sergipe, Pernambuco e o Recôncavo da Bahia - egressos da escravidão. A oferta de
trabalho da fábrica valenciana era atrativa. Esses industriais prometiam aos colonos: terras, materiais de trabalhos,
habitação, alimentação, vestimentas e remédios, ou seja, oportunidades que os ex-escravizados viam com bons
olhos, já que supririam as suas necessidades de sobrevivência negadas pelos governos brasileiros após a Abolição
(AVELINO, 2018). 

No pós-abolição as experiências sociais das comunidades negras foram pautadas na luta por autonomia
e ampliação dos direitos políticos e, também, incluía ter acesso à terra, direito de escolher livremente onde
trabalhar, de circular livremente pelas cidades sem precisar de autorização de outra pessoa, de não ser
importunado pela polícia, de cultuar seus deuses africanos ou venerar a sua maneira os santos católicos e,
sobretudo, direito de cidadania, (FRAGA, 2007). Assim, o projeto camponês se tornou um dos principais
caminhos adotados pelas comunidades negras que visavam adquirir melhores condições políticas de acesso à
terra e a garantia de sobrevivência em diferentes situações regionais no pós-abolição (RIOS; MATTOS, 2004).
O cuidado coletivo e a defesa do uso adequado da terra são legados que as comunidades
afrodescendentes no Brasil têm buscado preservar em suas práticas cotidianas. Na comunidade de terreiro Caxuté
– de origem bantu-indígena - essas práticas são ensinadas pela sacerdotisa Mam’etu Kafurengá através da
Pedagogia do Terreiro (SANTOS, 2019), ela infere “(...)e quem nos ensinou cuidar da terra? O nosso legado!
Aprendemos com a ancestralidade que é terra é para todos, que a vida é dividida”(KAFURENGÁ, 2019).
Destarte, o legado preservado e reproduzido no terreiro pelas mulheres provoca, por meio da cosmologia, disputas
ontológicas e epistemológicas com os modos de inteligibilidade estruturantes do capitalismo (LUGONES, 2014),
lutas cotidianas e alianças para existir a partir de uma ontologia própria. Outra informante diz: “A gente bate
nosso mutue Ntoto saudando a terra, porque nascemos dela”. Nascer da terra comporta redimensionar a vida
dantes ancorada na epistemologia ocidental.
Estamos falando então de um aprendizado que atravessa os saberes científicos a partir de uma lógica
própria obnubilada em favor de um projeto ontológico que se constituiu à custa da desumanização. Lugones
(2014) diz que Quijano não percebe a violência impingida às mulheres e faz apologia à intersubjetivação de
gênero quando não se atenta à sua historicidade (reduz ao controle do sexo e seus produtos, minimizando as
políticas construídas pelos femininos nas Américas). Para ela, a colonialidade de gênero é primordialmente a
binarização de corpos não humanos a partir do sexo, reduzindo a potencialidade dos princípios organizativos de
Abya Ayala e colonizando corpos funcionalmente ao sistema. Desta feita, Escobar (2014) nos alerta para a
dimensão política da ontologia e também para dimensão ontológica da política. Que sujeitos são apagados e os
que são criados pela modernidade colonial a que servem? Quem são os sujeitos que a política cria?
Intentamos, pois, que a categoria ‘mulheres de candomblé resiste ao gênero em sua história colonial – e
ao projeto ontológico ocidental- na medida em que sua inter-historicidade (SEGATO, 2012) - povo ameríndio e
o legado ancestral negro-, não tem o gênero como orientação, mas antes as práticas políticas ontológicas ligadas

à terra e às águas: elas nascem do barro. Daí (re) cria-se estratégias de potência em combate ao racismo-sexismo-
capitalismo estruturante das sociedades modernas e da realidade brasileira. A pedagogia do terreiro investe na construção de estratégias que foram apagadas pelo investimento da colonialidade de gênero, contidas na partilha
infra política entre sujeitos femininos para além do binarismo de gênero. Assim, o terreiro funciona como um
lugar que constitui possibilidade de acionar/produzir/ser “onde não me penso”, a partir de investimentos em
políticas de conhecimento coletivas. A ancestralidade orienta o manejo do sagrado, a re - inteligibilidade das
águas, das nsabas, da terra e do vento, as relações com a terra e o alimento. “Isso é agroecologia para gente pensar
num mundo sem veneno na terra, no alimento e na alma” (KAFURENGA, 2019).
A pedagogia do terreiro organiza o uso do solo, o manejo, a partir do trabalho coletivo aprendido na
vivencia do campesinato negro e pelo aprendizado político religioso construído pela relação com os Mukixi e
caboclos. Diz a informante Kafujemi (2019) “(...) Cada Nkise tem seu ngudia, então cada um de nós plantamos
de acordo com o que cada nkise come”. Deste modo, a sistematicidade é dada pela orientação ancestral sobre a
forma de cuidar da terra. Também narra Hooximale (2019) (...) Se não tiver respeito com a ancestralidade, com
ntoto, com a terra, nada vai para frente. Isso é importante para a gente que é mulher de ngunzu”. Segundo Bell
Hooks (1981), a experiência das mulheres negras orienta não só a percepção de si – que está para além daquilo
que é a mulher branca – como move o movimento de negras em direção a sua invenção de si.
Mulheres de candomblé se (re)criam por meio da relação com a terra e juntas aprendem sobre modos
ancestrais em diálogo com os ensinamentos contemporâneos da agroecologia a enfrentar a propriedade privada e
a privatização dos recursos hídricos. Diz Lidiane (2019): “Quando nossas ancestrais, nossas mais velhas,
principalmente as mulheres que tem maior do cuidado com a terra, com os animais, com as folhas (...) ela vai
aprendendo e passando para suas filhas como perpetuar, como multiplicar não só o alimento que sustenta nosso
corpo, mas que alimenta a alma. Às vezes a gente tá praticando a agroecologia, mas não sabemos” (LIDIANE,
2019). Deste modo, o legado ancestral e a agroecologia estão no cerne do enfrentamento à questão agrária
brasileira. Na medida em que temos um investimento na produção de uma memória ativa sobre o ancestral
interseccional cosmológico bantu, produzimos outros sentidos de existir e imaginários de transição (ESCOBAR,
2014), raiz das lutas ontológicas. Suma qmanã está circunscrito no “regresso do futuro”, categoria de
temporalidade construída por Quijano (SEGATO, 2015) para considerar que as lutas e disputas de povos
desprezados pela modernidade estão a efetivar modos de viver para além das sociabilidades vivenciadas de modo
hegemônico, se interpondo ao modo capitalista de produção e criando imaginários de outros mundos, outros
territórios. Lá e aqui está o território-Caxuté, a insistir em um mundo onde “(...) preto não morra porque é preto.
Isso não é sonho, é luta” (KAFURENGA, 2019).

Publicado

2021-08-27

Cómo citar

GIVIGI (MATAMBALE), A. C. N., AVELINO (MAKOTA), C. B. S., & DORNELLES (KOKULEHOOXI), P. G. (2021). MULHERES QUE NASCEM DO BARRO: O LEGADO DE CANDOMBLÉ E A FILOSOFIA DE SUMA QAMAÑA NA CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO-CAXUTÉ. Cadernos Macambira, 4(2), 69–73. Recuperado a partir de https://revista.lapprudes.net/CM/article/view/373